Em meio à rotina agitada dos passageiros do Distrito Federal uma iniciativa vem causando impacto social de maneira muito positiva há 20 anos. Desde que iniciou o projeto Cultura no Ônibus, em 2003, Antônio da Conceição Ferreira, de 52 anos, faz a diferença na vida das pessoas de uma maneira muito simples; através da literatura.
A ideia surgiu quando o maranhense percebeu que o livro, como fonte inesgotável de conhecimento, poderia circular com muita fluidez entre os ônibus em que trabalhava na época como cobrador. Ele começou a arrecadar livros e a exibi-los em uma caixa de sapato ao lado da roleta para despertar a atenção dos passageiros. Logo começou a emprestá-los e aceitar doações dando início a um ciclo cultural virtuoso. Em menos de um mês, ele instalou uma pequena prateleira de plástico ao lado da roleta para expor os livros.
“O livro é um suporte de conhecimento para formarmos uma sociedade melhor. E a cultura é um meio para libertar as pessoas, por isso, precisamos levar esse conhecimento para perto das delas”, explica o morador de Sobradinho 2.
Filho de pais analfabetos, Antônio só aprendeu a ler aos 13 anos. E, a partir daquele momento, sentiu que seria através dos livros que ele mudaria de vida. Foi bóia-fria e trabalhou sob o sol escaldante e o intenso calor no interior do Maranhão até decidir migrar para Brasília, em 1993, pouco depois de completar 22 anos. O objetivo era estudar na capital do país e encontrar um bom emprego. Pouco tempo depois de chegar, entrou na escola e logo foi contratado como cobrador de ônibus. O novo emprego, no entanto, exigia toda a dedicação do obstinado nordestino e ele precisou abandonar os estudos.
“Vim do Maranhão em busca de uma oportunidade melhor para estudar e trabalhar. Infelizmente, não foi possível conciliar os dois naquele momento para ajudar os meus pais, mas nunca perdi o sonho de voltar a estudar”, conta Antônio que hoje cursa Administração. Ele casou, teve um filho, hoje militar do Exército, separou, mas nunca deixou de se dedicar aos livros. Movido por uma vontade inspiradora de contribuir com a educação começou a pedir doações aos amigos, colegas de trabalho e aos passageiros.
Ao longo de 20 anos, arrecadou dezenas de milhares de livros e quis o destino que aquele maranhense que aprendeu a ler tão tardiamente fosse rebatizado pela comunidade como “Antônio do Livro”. E ele, então como cobrador, transformou o ônibus em um veículo não apenas para transportar passageiros, mas também para conduzir o conhecimento e a mensagem de que é possível mudar a realidade das pessoas com iniciativas simples.
O acervo se renova sempre e contempla obras de todos os gêneros. Desde livros didáticos e técnicos, passando por autores brasileiros e clássicos da literatura mundial. O passageiro pode ler durante a viagem ou levar emprestado.
Mas e se não forem devolvidos, Antônio?
“Não fico chateado se a pessoa não traz o livro de volta porque sei que o livro vai circular do mesmo jeito. Considero quem leva a obra, devolvendo ou não, como um produtor cultural”, diz, resignado.
Em 2015, Antônio do Livro recebeu o apoio da Viação Piracicabana e passou a coordenar o projeto Cultura no Ônibus como gestor cultural.
Bicicleta e mobilidade urbana
Empolgado com o retorno surpreendentemente positivo, Antônio decidiu que era hora de expandir a ideia e envolveu um outro modal de transporte em sua saga pela difusão da educação e da cultura: a bicicleta. Afinal, a leitura garante a liberdade pelo conhecimento e a bicicleta torna as pessoas livres pela mobilidade.
“Percebi que a sociedade está constantemente em movimento utilizando diferentes meios de transporte e encontrei essa oportunidade de fortalecer o conhecimento através da mobilidade urbana entre as pessoas por meio dos livros e das bicicletas”.
Nasceu, então, o projeto Cultura na Bicicleta. Além dos livros, ele passou a arrecadar bikes infantis. Antônio leva as “magrelas” em rodas de leitura que organiza em algumas regiões administrativas e faz doações para as crianças de famílias de baixa renda que participam e se envolvem na ação. “É uma maneira de estimular a leitura e a qualidade de vida ao mesmo tempo. Geralmente a bicicleta provoca a criança a conversar sobre a leitura e a interação social acontece naturalmente”, conta.
Livros mudam o mundo
Segundo ele, a bicicleta oferece também às crianças não apenas uma forma de lazer, mas uma maneira segura e eficiente de se deslocarem para a escola. “Para muitas crianças, é uma ferramenta que facilita o acesso à educação e atividades extracurriculares”, destaca. Algumas vezes na semana, Antônio pedala por Sobradinho 2 para arrecadar e doar livros e também para organizar rodas de leitura e fazer contatos em escolas. Em sua bicicleta, está a frase do escritor Mário Quintana que o inspira e motiva suas pedaladas:
“Livros não mudam o mundo, quem muda o mundo são as pessoas. Os livros só mudam as pessoas”.
O engajamento com a comunidade foi instantâneo e Antônio passou a receber centenas de bicicletas e livros. Ele guarda quase tudo em sua casa simples, em Sobradinho 2, onde funciona a sede de ambos os projetos. Lá, ele guarda tudo em dois cômodos que estão cheios até o teto. No quintal, oito barris também são usados para armazenar peças de bicicletas que arrecada em suas ações. “Todos esses itens podem ganhar uma nova vida e ajudar quem mais precisa”, relata Antônio.
Recentemente, sem espaço para acomodar duas centenas de bicicletas, o gestor cultural pediu ajuda aos colegas do trabalho e usou a garagem da Viação Piracicabana para guardá-las. Elas ficaram lá até serem doadas para a ONG Rodas da Paz e para a Associação dos Ciclistas de Planaltina (Asciclo). “Essa foi a maior doação que já recebemos desde a criação da ONG, há vinte anos. O Antônio faz um trabalho impressionante ao arrecadar essa quantidade enorme de bicicletas. Pela minha experiência dá muito trabalho arrecadar, juntar e armazenar tantas bikes”, diz Raphael Dornelles, coordenador da entidade.
Para o presidente da Asciclo, Eduardo Guimarães, as bicicletas arrecadadas por Antônio farão muitas crianças felizes. “Ele tá de parabéns. Nunca recebi uma doação tão grande. Já fizemos a triagem e percebemos que muitas crianças vão se divertir pedalando”. Das 200 bicicletas, 150 ficarão para o ONG Rodas da Paz e as demais seguirão para a Asciclo.
O projeto Cultura na Bicicleta venceu um prêmio do Ministério da Cultura e tem parceiros que oferecem todo o apoio a Antônio. “Sempre aproveito para agradecer quem me dá o suporte e as condições para continuar: a Viação Piracicabana, a Secretaria de Cultura do GDF, Mala do Livro e o DER-DF”. Ele reclama apenas que nunca recebeu o valor do prêmio prometido.
Exemplo de cidadania
No mundo dominado pela internet e surpreendido com o rápido avanço da inteligência artificial, o exemplo de solidariedade do Antônio do Livro prova que a literatura ainda é uma potente ferramenta de transformação social. “Eu entendo o livro como uma fonte de conhecimento mais segura do que a internet porque nas redes sociais há muitas notícias falsas. E o livro de papel é mais gostoso de ler e pode ser manuseado. É um contato mais intimista entre o livro e o leitor”, diz Antônio.
A iniciativa de Antônio do Livro é uma história inspiradora de como pequenas ações podem gerar grandes impactos, promovendo educação, mobilidade e esperança. “Acredito que, com um pouco de esforço e boa vontade, podemos criar um mundo melhor para todos. Se cada um fizer um pouquinho, podemos mudar o mundo, conclui Antônio.
Esse maranhense de estatura baixa, moreno, de voz mansa e muito simples mostra que qualquer pessoa, independentemente da profissão ou classe social, pode ser um agente de mudança positiva na sociedade através do engajamento comunitário. Basta ser criativo e ter iniciativa.